segunda-feira, 28 de maio de 2012

Estrela Literaria - O gol, o goleiro, o craque, o boi... ou nada disto.




por Bruno Nöthlich 

Fustigava a grama como pelota na várzea. Também pudera era um boi! Quanto ao onde não se sabia: campo ou pasto? Sem dúvida são mais fáceis as escolhas do par-ou-ímpar, tem sempre o craque – um no máximo – e diversos pernas-de-pau, beques exímios nas violências consensuais do território e laterais oficiosos (desempregados mesmo), que mesmo desprovidos de quaisquer malícias, correm, correm, e como correm!, além de todo cansaço ordinário. O boi? Bem, este estará lá no campo pastando haja gente jogando, haja buracos de terra assaltando a sua grama. Às vezes mais de um único quadrúpede se vê ali. Às vezes são os goleiros. Pois nunca um boi de campo de várzea ajudou o miserável do goleiro. Desafio alguém a dizer de pé juntinho com o crucifico na mão fechada e beijando os dedos com força sacrossanta que já viu um boi pastando em cima da linha do gol. Acontece, é verdade, de encontrarmos esse pacato personagem na pequena área, que afinal de contas não é a toa recebe a alcunha de ‘zona do agrião’. Porém, entretanto, contudo, todavia... podem estar certos: a porra do boi vai atrapalhar o goleiro...
Eis, então, nosso caso. Armandinho Jacór, ajudante feirante, descendente de europeus eslavos, mais ou menos, e que todos na redondeza tinham como dogma de fé jamais ter deixado um único ovo cair de suas mãos, independente da quantidade de caixas que ele carregasse (e, olha, eram muitas!), resolveu após vários desafios e paqueras agarrar num certo dia escolhido. Reparem: Armandinho Jacór não tinha nada de bobo, ele esperou para alardear com tamanha esperteza e envolvente expectativa, que do mendigo ao dono do hipermercado todos juraram comparecer. E compareceram! Quanto ao boi? Bem, até que tentaram retirar do campo. Conseguiram só fazê-lo deitar na meia cancha direita, já numa subidinha de leve que fazia a bola rolar marota para a meiuca. O craque sabia disto, claro, os laterais e cabeças-de-bagre tentavam, o boi soberbamente ignorava.
Começou a pelejança. Assim mesmo sem apito, nem juiz. Quanto se fazia precisão era o povão que gritava foi falta, parô! parô!. Aí se não parassem! Sempre paravam, nem que fosse para discutir, falta, ô cacete, bradava o zagueiro grosso para um seguimento da geral, que por peculiar solidariedade local mesmo quando outra parte dos populares discordava, esta imediatamente virava a concordar, uma vez que por antropologias próprias desse lugar eram os “de fora” quem mandavam nos “de dentro”. Ao menos em termos das penalidades. (Magnânimo isso, não é?). No que vale aos dribles e passes, o oposto se via, e fácil ouvia-se vaitománucu! é você que está jogando?. O boi, no entanto, igual ao craque se concentrava em fazer o tão somente determinado pelo o destino: pastar. Ficavam moscando o tempo inteiro ambos os dois – sim! estilística e eufemisticamente ambos os dois no campo.
A bola ia e vinha, ia e vinha. O boi, o craque, também o goleiro, semimóveis. Ruminando, cuspindo, bocejando. De modos que para o bom andamento da crônica, o intelectual se intromete no meio do povão e grita passa a merda da bola pro boi, caraáálho!. O lateral entendeu e saiu correndo desbravado sem bola, mas com muita vontade e a certeza de que o companheiro iria cruzar. Assinala com o braço em riste, o craque assiste ao lance com absoluto desdém, o goleiro pela primeira vez fica tenso com um olho na bola e o outro no boi, que finalmente se levanta para o delírio da massa, o perna-de-pau ergueu sua queixada, viu o boi, calculou o passe espetacular por cobertura que certamente faria história naquele descampado, o lateral não parava de avançar nem mesmo para receber a bola e logo foi estufando o peito com possessões de é minha! é minha!, cruzamento feito, a magia futebolística haverá de se realizar, o boi caga no gramado, o bola vai praputaquepariu, o intelectual não compreende nada de coisa nenhuma, o craque desiste e abandona o jogo, feliz é do goleiro respirando aliviado a bosta e o mito, ou o mito da bosta, ou qualquer outro símbolo secularmente insignificante nos campos de várzea do futebol.
Armandinho Jacór não jogará novamente, continuará a carregar caixas de ovos sem frigir um sequer. O ajudante de feirante não caiu de quatro no pasto como boa parte do povão quis. Também não fez nenhuma habilíssima defesa e, assim, logrará por um tempinho de dizes-me-dizes de seus não feitos em campo. Depois tudo se esquecerão. Pois que até o boi pelota não lhe deu, nem a tirou. Armandinho Jacór será um nada, como todo sujeito tentativo de goleiro, que por não alcançar os ângulos meritórios nas mãos ou cair nas sumárias humilhações por entre as pernas, para que ele serviria à multidão? Não se gastem em responder. Porém, o boi no campo continua, permanecerá mítico, insignificantemente mítico. Fustigando a grama como pelota na várzea.


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