terça-feira, 5 de junho de 2012

Estrela Literária - Felipinho desandou o universo

por Bruno Nöthlich




Amanhã haveria jogo. Haveria se... Mas não importa as causas. Futebol está longe de ser uma ciência e das causalidades só interessam as consequências. Então, não se iludam. Cataclismos acontecem e verdadeiramente se sucedem a um domingo sem futebol. Mesmo que a partida tenha sido no sábado, o domingo passará como mera prorrogação até a segunda-feira. Ok, ok... uma quinta ou sexta após um jogo de meio de semana tem seu valor jocoso também, porém faltando do deliberante poder de aniquilar cinco dias de existência transcendental de seus colegas de trabalho às exigências e chatices dos ofícios.

Pensem no Felipinho, o velho despachante da associação dos comerciantes do município de Entraves. Vai que o franqueado da ótica Morô precisasse da autorização da prefeitura para armar uma tenda de exames gratuitos na praça? Não conseguirá desse jeito tão fácil novos clientes sem a posse de um papeleto da burocracia provinciana. Ou mesmo a dona da loja de flores querendo colocar na sua fachada uma assim tão discreta propaganda luminosa com sonoridade estonteante pelo dia das mães, sendo que tudo em Entraves é dificultoso, como fará? Eis que entra em ação o queridíssimo despachante.

Decorre que as relações entre quem ganha e quem perde não são de forma alguma entorpecidas de bom e belo. O que é belo os comerciantes fazem caro e o que é bom o despachante se faz vingado. Além disto, o despachante tem a predestinação de vibrar fora de modos para o time local de menor população de torcedores ativos. Não que o seu time fosse de jeito e maneira pequeno, compreendam, mas onde pouco se compra, pouco se investe, e menos ainda se ganha. Resultado: o time do despachante perde dominicalmente e semana dele já começa labutando entraves. Isto porque ninguém na associação dos comerciantes torce pela Sociedade Esportiva Entraves. Ao contrário, galhofavam do “entrevado” alviverde. Por isso Felipinho era o primeiro a estar no trabalho no pós-domingo e antecipando qualquer ponto batido pelos colegas. Pois se por acaso calhasse de outro antes dele chegar, certo será encontrar na sua mesa ou na porta de entrada ou mesmo no espelho do banheiro as mais sortidas referências verde e branca ao sensacional desempenho do Entraves.

Então, o dia começa, a manhã segue e um a um os membros da associação comercial recebiam nos respectivos estabelecimentos negativas, informes de adiamento, solicitações de documentação pendentes, montanhas de formulários sem os preenchimentos devidos etc etc etc. Nada que não fosse ajeitado ao longo da semana, porque o futebol possui a inenarrável força de cordializar toda coisa e todo mundo............................. porém ontem não teve futebol.
Já sabemos! Cataclismos acontecerão numa segunda-feira seguida a um fim-de-semana sem futebol. O velho Felipinho entrou na associação naquele dia por volta das dez horas. Silêncio. Os telefones não paravam de tocar. Silêncio. O sepulcral semblante calava o mundo. Shhhh. Cochichos aqui e ali ecoavam como mantra. O que fará esse homem? Desprovido de qualquer potência ele se senta e muito lento e delicado toca as duas mãos na mesa. O olhar permanece vazio no vazio. O móvel começa a se desfazer no ar. Como um ácido o estado do velho simplesmente dissolvia tudo em nada. A cadeira, o chão corrói-se, crateras se abrindo nas paredes, o nada crescendo, crescendo. Inertes as pessoas perdem densidade, corporeidade, espiritualidade, os olhos delas transparentemente sumindo. A associação comercial, o município de Entraves por inteiro desparecendo ao redor de Felipinho. E continuará o nada expandido sua entropia... até o domingo. Se houver futebol, a ordem universal será restabelecida.






















Nenhum comentário:

Postar um comentário

Gingaê!